No antigo calendário litúrgico, o dia 1º de julho era dedicado ao Preciosíssimo Sangue de N. S. Jesus Cristo. Após o Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI uniu sua celebração à do Corpo de Cristo (Corpus Christi), que oficialmente passou a se chamar solenidade do “Sacratíssimo Corpo e Sangue de Cristo”. Nada impede que dediquemos o mês de julho – tempo de férias, descanso – para prestar um culto especial ao Sangue de Cristo, grandioso sinal do amor misericordioso do Senhor para conosco, já que a maior prova de amor é dar a vida por quem se ama, de modo especialíssimo morrendo pelo outro (martírio). O Filho de Deus quis livremente assumir em si mesmo o princípio (ritual, ético e espiritual) do Antigo Testamento o qual expressa que “sem efusão de sangue não há remissão” (Hb 9,22).
A este propósito, vale recordar as palavras do Papa João Paulo II: “O sinal do "sangue derramado", como expressão da vida doada de modo cruento em testemunho do amor supremo, é um acto da condescendência divina à nossa condição humana. Deus escolheu o sinal do sangue, porque nenhum outro sinal é tão eloquente para indicar o envolvimento total da pessoa” (Discurso às associações dedicadas ao culto do Sangue de Cristo, 1/07/2000, n. 2). O Novo Testamento atesta sobejamente que o “precioso sangue [pretióso sánguine]” (1Pd 1,19) ou “sangue inocente” (Mt 27,4) do Filho de Deus é fonte especial de benefícios para a humanidade; é sobretudo em ambientes de judeu-cristãos de língua grega (Jerusalém, Antioquia) que se enfatiza a interpretação “tipológica cultual” (servindo-se de imagens do Antigo Testamento, sobretudo ligadas às liturgias no templo) do caráter expiatório do sangue de Cristo (cf. Kessler, Hans, Cristologia, Queriniana, 2001, p. 80), o que, porém, não lhe altera a veracidade.Para alimentar a nossa fé e piedade, elencamos a seguir 10 valiosos ensinamentos bíblicos sobre o valor do Sangue de Jesus:
01. Pelo sangue de Jesus é selada a Nova Aliança entre Deus e a humanidade, infinitamente superior à primeira: coroando uma vida inteira de entrega ao Pai por cada um de nós, na Última Ceia Jesus declarou: “Isto é o meu sangue, o sangue da Aliança, que é derramado por muitos para remissão dos pecados” (Mt 26,28; cf. Mc 14,24; 1Cor 11,25; Hb 9,18; 10,29; 12,24).
02. Pelo sangue de Jesus derramado livremente em sacrifício, temos agora Alguém que nos pode guiar com segurança neste mundo: na condição de sacerdote-altar-cordeiro, o Senhor Crucificado se torna o “Bom Pastor” por excelência, sendo plenamente coerente com o que ensina: “O Deus da paz, que fez subir dentre os mortos aquele que se tornou, pelo sangue de uma aliança eterna, o grande Pastor das ovelhas, nosso Senhor Jesus...” (Hb 13,20). O sangue, a água e o Espírito também “testemunham” a favor da inigualável condição de Filho de Deus (1Jo 5,6.8).
03. Pelo sangue de Jesus se dá a verdadeira purificação do pecado da humanidade, da qual se espera uma resposta de fé e amor: No Antigo Testamento o propiciatório era aspergido com sangue durante rituais expiatórios (cf. Lv 16,1.15), figura do que haveria de vir: “Deus o expôs [Jesus Cristo] como instrumento de propiciação, por seu próprio sangue, mediante a fé” (Rm 3,25; cf. 5,9); “E é pelo sangue deste [o Amado] que temos a redenção, a remissão dos pecados” (Ef 1,7; cf. 1Pd 1,18-19; Ap 1,5; 5,9).
04. Pelo sangue de Jesus o gênero humano foi libertado do domínio do demônio: após o pecado dos primeiros pais, Satanás ganhou amplo espaço para agir no mundo e na história, o que foi alterado com a Encarnação Redentora do Filho de Deus: “Uma vez que os filhos têm em comum carne e sangue, por isso também ele participou da mesma condição, a fim de destruir pela morte o dominador da morte, isto é, o diabo” (Hb 2,14); “Eles [os nossos irmãos], porém, o venceram [o acusador] pelo sangue do Cordeiro” (Ap 12,11).
05. Pelo sangue de Jesus podemos nos aproximar mais de Deus e entre nós, renovando-se assim o amor, a comunhão: a primeira aproximação que se operou foi entre gentios e judeus (Ef 2,14), seguida pela de todos: “Mas agora, em Cristo Jesus, vós, que outrora estáveis longe, fostes trazido para perto, pelo sangue de Cristo” (Ef 2,13); “...realizando a paz pelo sangue da sua cruz” (Cl 1,20).
06. Pelo sangue de Jesus somos santificados, ou seja, reservados para Deus e o que Lhe diz respeito, bem como abençoados, ou seja, cumulados com inúmeros benefícios (sobretudo espirituais): aquele que acolhe a salvação do Senhor e procura viver o seu Evangelho faz parte do seu povo santo: “Foi por isso que Jesus, para santificar o povo por seu próprio sangue, sofreu do lado de fora da porta” (Hb 13,12 – alusão ao fato de que Jesus foi crucificado fora dos muros da cidade: Mt 27,32p); “...para obedecer a Jesus Cristo e participar da bênção da aspersão do seu sangue” (1Pd 1,2). At 20,28 nos recorda que o Pai adquiriu para si a “Igreja de Deus” mediante “o sangue do seu próprio Filho” (cf. Ef 5,25-27).
07. Pelo sangue de Jesus cada ser humano, em particular, pode obter a libertação de tudo o que nele se opõe à vontade divina: com nosso livre arbítrio, devemos permitir que os efeitos da redenção nos atinjam aqui e agora, transformando a nossa inteligência, vontade, os sentimentos, impulsos: “...quanto mais o sangue de Cristo que, por um Espírito eterno, se ofereceu a si mesmo a Deus como vítima sem mancha, há de purificar a nossa consciência das obras mortas para que prestemos um culto ao Deus vivo” (Hb 9,14; cf. 1Jo 1,7-9).
08. Pelo sangue de Jesus misticamente recebido na Eucaristia, obtemos paulatinamente a vida plena: É o que Jesus nos prometeu no famoso discurso sobre o pão da vida: “Em verdade, em verdade, vos digo: se não ... beberdes o sangue [do Filho do Homem], não tereis a vida em vós... a vida eterna...” (Jo 6,53-56; cf. 1Cor 10,16). A imagem antiga do sangue como símbolo da vida encontra aqui seu sentido mais pleno.
09. Pelo sangue de Jesus temos acesso ao Paraíso, à eterna comunhão de amor com Deus: o cerimonial israelita da expiação é substituído pela única oferenda do sangue de Cristo, permitindo-nos o acesso ao “Santo dos Santos”: “Ele entrou uma vez por todas no Santuário, não com o sangue de bodes e de novilhos, mas com o próprio sangue, obtendo uma redenção eterna” (Hb 9,12); “Sendo assim, irmãos, temos a plena garantia para entrar no Santuário, pelo sangue de Jesus” (Hb 10,19).
10. Pelo sangue de Jesus seremos capazes de celebrar eternamente a Sua e a nossa vitória! Para isso a comunidade cristã e cada batizado precisam estar unidos ao Senhor (que “veste um manto embebido de sangue” – Ap 19,13), sobretudo durante as tentações ou provações: “Estes são os que vêm da grande tribulação: lavaram suas vestes e alvejaram-nas no sangue do Cordeiro” (Ap 7,14).“Seu corpo oferecido e seu sangue derramado fazem portanto de sua morte um sacrifício duplamente significativo: sacrifício de aliança, que substitui a aliança do Sinai por uma nova; sacrifício de expiação, segundo a profecia do Servo de Javé. O sangue inocente injustamente derramado se torna assim o sangue da redenção” (Vocabulário de teologia bíblica, dir. Xavier Léon-Dufour, Vozes, 19996, col. 946)
Um dos grandes propagadores do culto ao Sangue de Cristo foi S. Gaspar del Bufalo (1786-1837), padre, nascido em Roma, Itália. Ordenado em 1808, recusou a se submeter ao tirano Napoleão e foi exilado por anos (1810-1814). Foi beatificado pelo Papa Pio X em 8/12/1904 e canonizado por Pio XII em 12/06/1954. Fundou a Congregação dos Missionários do Preciosíssimo Sangue e as Irmãs Adoradoras do Preciosíssimo Sangue. Afirmava com vigor: “A devoção ao Preciosíssimo Sangue será o meio mais seguro para chegar ao amor de Jesus Cristo”. Este excesso de devoções é nocivo à fé? Não, se mantivermos presente o seu nexo entre si e de todas elas com os mistérios centrais da nossa fé cristã (Credo, Liturgia, Moral etc.). Por exemplo, há um profundo nexo entre a devoção ao Sagrado Coração de Jesus (séc. XVII), ao seu Preciosíssimo Sangue (séc. XIX) e à Misericórdia Divina (séc. XX); são como elos de uma mesma corrente, pois do coração divino-humano de Jesus jorra sangue e água, sinais (“sacramentos”) do amor misericordioso da Santíssima Trindade para com o gênero humano. De fato, na Ladainha do Sangue de Jesus rezamos: SÁNGUIS CHRÍSTI, FLÚMEN MISERICÓRDIAE: SÁLVA NOS! [Sangue de Cristo, rio de misericórdia: salvai-nos!] A Missa votiva em honra do Preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, presente no novo Missal Romano, recolhe também esta relação entre sangue de Cristo e misericórdia divina:“Ó Deus, que resgatastes a todos pelo Sangue precioso do vosso Filho, conservai em nós a obra de vossa misericórdia para que, celebrando sem cessar o mistério de nossa salvação, possamos alcançar os seus frutos. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo”.Na esteira da antiga tradição patrística (S. Agostinho, Ambrósio etc.), o Catecismo da Igreja Católica (1997) nos recorda que o sangue e a água que jorraram do lado aberto de Cristo dão origem à Igreja – é o seu parto! – e aos seus sacramentos, particularmente a Eucaristia e o Batismo (nn. 766 e 1225; cf. Concílio de Viena, Fidei catholicae; Vaticano II, Sacros. conc. 5). Aliás, há dezenas de referências ao sangue de Cristo e seus efeitos salutares no Catecismo, que mereceriam um estudo à parte (nn. 433; 517; 597; 602; 613; 781; 808; 827; 948; 981; 994; 1105ss; 1244; 1275; 1323; 1331ss; 1350; 1381; 1426; 1442; 1524; 1621; 1846; 2305; 2618). Assim sendo, uma autêntica devoção ao sangue de Cristo nos auxilia a mergulhar mais e mais no mistério de Cristo, da Igreja e dos sacramentos, estimulando-nos, outrossim, a “dar o sangue” por Cristo e pelos irmãos. Por isso, recentemente (17/11/2001) a Igreja reafirmou o valor da devoção ao sangue de Jesus através do Diretório sobre piedade popular e liturgia, emanado pela Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, reconhecendo entre as válidas expressões da piedade popular a seu respeito a Coroa do Sangue precioso de Cristo, a Hora de adoração, a Via Sanguinis e a já mencionada Ladainha (n. 178), a qual você pode encontrar num dos nossos opúsculos (Guia da devoção à misericórdia divina, n. 2, pp. 61s).Vários séculos atrás, a grande Doutora da Igreja, S. Catarina de Sena, ensinava e testemunhava a respeito do precioso sangue do Senhor:“No entanto, se por maldade, se comportarem com ingratidão, sem reconhecimento para comigo e meus servidores, o dom a eles feito por misericórdia se transformará em juízo e ruína. Isto, não por falha da misericórdia, (...) mas unicamente pela maldade e dureza que eles mesmos, livremente, puseram em seus corações, qual diamante que somente o sangue de Cristo consegue quebrar. Apesar de tal dureza, afirmo-te que tais pessoas, enquanto se acham nesta vida e possuem a liberdade, poderão invocar o sangue do meu Filho e derramá-lo sobre o próprio coração; então Cristo o romperá e elas receberão o fruto do sangue”; “Confesso ao Criador que transcorri a vida nas trevas! Refugio-me, porém, nas chagas de Cristo crucificado e lavo-me no seu sangue. Destruirei desse modo minhas iniquidades...” (O Diálogo, ano de 1378, nn. 2.4; 18,3.1).Mais de cinco séculos depois, através da Apóstola da Divina Misericórdia, Santa Faustina Kowalska (+1938), o próprio Jesus expressa o desejo de que seu sangue e suas chagas sejam oferecidos em oração de expiação pelos próprios pecados e os do mundo inteiro, especialmente dos pecadores endurecidos (D 39), bem como pelas almas do purgatório (D 1226s). Isto é compreensível, uma vez que o seu sangue derramado é uma fonte transbordante de misericórdia (D 367); “Vós nos destes o que tínheis de mais caro, isto é, o Sangue e a Água do Vosso Coração” (D 1747), afirma a religiosa polonesa. Na famosa imagem de Jesus Misericordioso, os raios vermelhos representam o Seu sangue derramado que é a vida das almas (D 299), ou seja, a graça sobrenatural que nos fortalece. Em 1937 S. Faustina teve a seguinte visão mística: “À noite, vi Nosso Senhor crucificado. Das mãos, dos pés e do lado corria o Preciosíssimo Sangue. A seguir, Jesus me disse: Tudo isto é pela salvação das almas” (D 1184; cf. 1275). O valor do Seu sangue divino-humano para a nossa salvação é incalculável: “Ó Jesus, quando medito sobre esse grande preço do Vosso Sangue, alegro-me com a sua grandeza, porque uma só gota seria suficiente para todos os pecadores” (D 72). Diante de tão grandes mistérios, não podemos deixar de nos admirar, de contemplar, de rezar! Em certa ocasião Faustina ora: “Ó Jesus, lembrai-Vos da Vossa amarga Paixão e não permitais que se percam almas remidas com Vosso Preciosíssimo e Santíssimo Sangue” (D 72). Na mais famosa invocação se clama pelo sangue do Senhor: “Ó Sangue e Água que jorrastes do Coração de Jesus, como fonte de misericórdia para nós, eu confio em Vós!” (D 84; 187; 309). No Terço da Misericórdia nos unimos a Cristo, na força do Espírito, e oferecemos ao Pai o sangue de Cristo por nossos pecados (D 476). Na Eucaristia (“Hóstia Santa”) “está encerrado o Corpo e o Sangue do Nosso Senhor, como testemunho da infinita misericórdia para conosco, e especialmente para com os pobres pecadores!” (D 356), e através da Confissão também desce sobre nós o sangue e a água que enobrecem a alma (D 1602). Em suas experiências místicas, S. Faustina por vezes afirma que o sangue do Filho de Deus se uniu ao dela de um modo quase real (p. ex., D 832; 992; 1089; 1575). “Enquanto é tempo, recorram à fonte da Minha misericórdia, tirem proveito do Sangue e da Água que jorraram para eles”, pede Jesus a todos nós (D 848).Que todo Devoto e Apóstolo de Jesus Misericordioso possa clamar freqüentemente pelo poder do sangue de Jesus! Encerrando, reproduzimos na íntegra um importante – e desconhecido – documento do Magistério eclesial sobre o valor do Sangue de Cristo e o seu culto específico, o qual no ano que vem (2010) completará 50 anos:Carta apostólica INDE A PRIMIS (“Desde os primeiros”) do Papa João XXIIIO CULTO DO PRECIOSÍSSIMO SANGUE DE JESUS CRISTOAos veneráveis irmãos patriarcas, primazes, arcebispos, bispos e outros ordinários do lugar em paz e comunhão com a Sé Apostólica.Veneráveis Irmãos, saudação e Bênção Apostólica,
1. Desde os primeiros meses do nosso serviço pontifício aconteceu-nos muitas vezes - e não raro a palavra foi precursora ansiosa e inocente do nosso próprio sentir - convidar os fiéis, em matéria de devoção viva e cotidiana, a se volverem com ardente fervor para a expressão divina da misericórdia do Senhor sobre as almas individuais, sobre a sua Igreja santa e sobre o mundo inteiro, dos quais todos Jesus continua sendo o Redentor e o Salvador. Queremos dizer a devoção ao Preciosíssimo Sangue.
2. Esta devoção foi-nos instilada no próprio ambiente doméstico em que floresceu a nossa infância, e sempre recordamos com viva emoção a recitação das ladainhas do Preciosíssimo Sangue que os nossos velhos pais faziam no mês de julho.
3. Lembrados da salutar exortação do Apóstolo: "Estai atentos a vós mesmos e a todo o rebanho: nele o Espírito Santo vos constituiu guardiães, para apascentardes a Igreja de Deus, que ele adquiriu para si pelo sangue de seu próprio Filho" (At 20,28), cremos, ó Veneráveis Irmãos, que entre as solicitudes do nosso universal ministério pastoral, depois da vigilância sobre a sã doutrina deve ter um lugar privilegiado aquela que diz respeito ao reto desenvolvimento e ao incremento da piedade religiosa, nas manifestações do culto litúrgico e privado. Parece-nos, portanto, particularmente oportuno chamar a atenção dos nossos diletos filhos para o nexo indissolúvel que deve unir as duas devoções, já tão difundidas no seio do povo cristão, isto é, o ss. Nome de Jesus e o seu sacratíssimo Coração, aquela que pretende honrar o Sangue Preciosíssimo do Verbo encarnado, "derramado por muitos em remissão dos pecados" (cf. Mt 26,28).
4. Com efeito, se é de suma importância que entre o Credo católico e a ação litúrgica da Igreja reine uma salutar harmonia, visto que "a norma do acreditar define a norma de rezar", e nunca sejam consentidas formas de culto que não brotem das fontes puríssimas da verdadeira fé, é justo, outrossim, que floresça harmonia semelhante entre as várias devoções, de modo que não haja contraste ou dissociação entre as que são consideradas como fundamentais e mais santificantes, e que, ao mesmo tempo, sobre as devoções pessoais e secundárias tenham o primado na estima e na prática aquelas que melhor realizam a economia da salvação universal operada pelo "único mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus homem, aquele que deu a si mesmo em resgate por todos" (1Tm 2,5-6). Movendo-se nesta atmosfera de reta fé e de sã piedade, os féis estão seguros de sentir com a Igreja, ou seja de viverem em comunhão de oração e de caridade com Jesus Cristo, fundador e sumo sacerdote dessa sublime religião que dele recebe, com o nome, toda a sua dignidade e valor.
5. Se agora detivermos um rápido olhar aos admiráveis progressos que a Igreja católica tem operado no campo da piedade litúrgica, em salutar consonância com o desenvolvimento da sua fé na penetração das verdades divinas, indubitavelmente será consolador verificarmos que nos séculos próximos a nós não faltaram, da parte desta Sé Apostólica, claros e repetidos atestados de consentimento e de incentivo para todas as três devoções supra mencionadas; devoções que foram praticadas desde a Idade Média por muitas almas piedosas, e depois foram difundidas em várias dioceses, ordens e congregações religiosas, mas que aguardavam da Cátedra de Pedro o cunho da ortodoxia e a aprovação para a Igreja universal.
6. Baste-nos recordar que os nossos predecessores desde o século XVI enriqueceram de favores espirituais a devoção ao ss. Nome de Jesus, da qual no século precedente se fizera apóstolo infatigável, na Itália, S. Bernardino de Sena. Em honra desse ss. Nome foram, antes de tudo, aprovados o ofício e a missa, e em seguida as Ladainhas. Nem foram menos insignes os privilégios concedidos pelos pontífices romanos ao culto para com o Sacratíssimo Coração de Jesus, em cuja admirável propagação tamanha parte tiveram as revelações feitas pelo Sagrado Coração a Santa Margarida Maria Alacocque. E tão alta e unânime tem sido a estima dos pontífices romanos a esta devoção, que eles se comprazeram em lhe ilustrar a natureza, defender a legitimidade, e inculcar a prática com muitos atos oficiais, aos quais puseram coroamento três importantes encíclicas sobre este assunto.
7. Mas também a devoção ao Preciosíssimo Sangue de Jesus, da qual foi propagador admirável no século passado o sacerdote romano S. Gaspar del Bufalo, teve o merecido consentimento e o favor desta Sé Apostólica. Com efeito, importa recordar que, por ordem de Bento XIV, foram compostos a missa e o ofício em honra do Sangue adorável do divino Salvador; e que Pio IX, em cumprimento de um voto feito em Gaeta, quis que a festa litúrgica fosse estendida à Igreja universal. Finalmente, foi Pio XI, de feliz memória, quem, em lembrança do 19° centenário da redenção, elevou a sobredita festa a rito duplo de primeira classe, a fim de que, pela acrescida solenidade litúrgica, mais intensa se tornasse a própria devoção, e mais copiosos se entornassem sobre os homens os frutos do Sangue redentor.
8. Seguindo, portanto, o exemplo dos nossos predecessores, com o fim de favorecer ulteriormente o culto para com o precioso Sangue do Cordeiro imaculado, Cristo Jesus, aprovamos-lhe as ladainhas, segundo a ordem compilada pela Sacra Congregação dos ritos, incentivando outrossim a reza das mesmas em todo o mundo católico, quer em particular quer em público, com a concessão de indulgências especiais. Possa este novo ato do cuidado por todas as Igrejas (cf. 1Cor 11,28), próprio do pontificado supremo, em tempo das mais graves e urgentes necessidades espirituais, acordar no ânimo dos crentes a convicção do valor perene, universal, sumamente prático das três louvadas devoções.
9. Por isto, ao aproximar-se a festa e o mês dedicados ao culto do Sangue de Cristo, preço do nosso resgate, penhor de salvação e de vida eterna, façam-na os fiéis objeto de meditações mais devotas e de comunhões sacramentais mais freqüentes. Iluminados pelos salutares ensinamentos que promanam dos Livros sagrados e da doutrina dos padres e doutores da Igreja, reflitam no valor superabundante, infinito desse Sangue verdadeiramente preciosíssimo, do qual uma só gota pode salvar o mundo todo de toda culpa", como canta a Igreja com o Angélico Doutor, e como sabiamente confirmou o nosso predecessor Clemente VI.
10. Porquanto, se infinito é o valor do Sangue do Homem-Deus, e se infinita foi a caridade que o impeliu a derramá-lo desde o oitavo dia do seu nascimento, e depois, com superabundância, na agonia do horto (cf. Lc 22,43), na flagelação e na coroação de espinhos, na subida ao Calvário e na crucifixão, e, enfim, da ampla ferida do seu lado, como símbolo desse mesmo Sangue divino que corre em todos os sacramentos da Igreja, não só é conveniente, mas é também sumamente justo que a ele sejam tributadas homenagens de adoração e de amorosa gratidão por parte de todos os que foram regenerados nas suas ondas salutares.
11. E ao culto de latria a ser prestado ao cálice do Sangue do Novo Testamento, sobretudo no momento da sua elevação no sacrifício da Missa, é sumamente conveniente e salutar que se siga a comunhão com esse mesmo Sangue, indissoluvelmente unido ao corpo do nosso Salvador no sacramento da eucaristia. Em união, então, com o sacerdote celebrante, poderão os fiéis com plena verdade repetir mentalmente as palavras que ele pronuncia no momento da comunhão; "Tomarei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor... O sangue de Cristo me guarde para a vida eterna. Amém". Desse modo os fiéis que dele se aproximarem dignamente receberão mais abundantes os frutos de redenção, de ressurreição e de vida eterna que o Sangue derramado por Cristo "por impulso do Espírito Santo" (Hb 9,14) mereceu para o mundo inteiro. E, nutridos do corpo e do sangue de Cristo, tornados participantes do seu poder divino, que fez surgir legiões de mártires, eles irão ao encontro das lutas cotidianas, dos sacrifícios, até mesmo do martírio, se preciso, em defesa da virtude e do reino de Deus, sentindo em si mesmos aquele ardor de caridade que fazia S. João Crisóstomo exclamar: "Saímos daquela mesa quais leões expirando chamas, tornados terríveis ao demônio, pensando em quem é o nosso Chefe e quanto amor teve por nós... Esse Sangue, se dignamente recebido, afasta os demônios, chama para junto de nós os anjos e o próprio Senhor dos anjos... Esse Sangue derramado purifica o mundo todo... Este é o preço do universo, com ele Cristo redime a Igreja... Tal pensamento deve refrear as nossas paixões. Até quando, com efeito, ficaremos apegados ao mundo presente?Até quando ficaremos inertes?Até quando descuraremos pensar na nossa salvação? Reflitamos sobre os bens que o Senhor se dignou de nos conceder, sejamos-lhe gratos por eles, glorifiquemo-lo não só com a fé, mas também com as obras".
12. Oh! se os cristãos refletissem mais freqüentemente no paternal aviso do primeiro papa: "Portai-vos com temor durante o tempo do vosso exílio. Pois sabeis que não foi com coisas perecíveis, isto é, com prata ou ouro que fostes resgatados..., mas pelo Sangue Precioso de Cristo, como de um cordeiro sem defeito e sem mácula" (1Pd 1,17.19); se eles dessem mais solícito ouvido à exortação do apóstolo das gentes: "Alguém pagou alto preço pelo vosso resgate; glorificai, portanto, a Deus em vosso corpo" (l Cor 6,20). Quanto mais dignos, mais edificantes seriam os seus costumes, quanto mais salutar para a humanidade inteira seria a presença, no mundo, da Igreja de Cristo! E, se todos os homens secundassem os convites da graça de Deus, que os quer todos salvos (cf. 1Tm 2,4), porque ele quis que todos fossem remidos pelo Sangue de seu Unigênito, e chama todos a serem membros de um só corpo místico, do qual Cristo é a Cabeça, então quanto mais fraternas se tornariam as relações entre os indivíduos, os povos, as nações, e quanto mais pacífica, quanto mais digna de Deus e da natureza humana, criada a imagem e semelhança do Altíssimo (cf. Gn 1,26), se tornaria a convivência social!
13. Era a contemplação desta sublime vocação que s. Paulo convidava os fiéis provenientes do povo eleito, tentados de pensar com saudade num passado que fora apenas uma pálida figura e o prelúdio da nova aliança: "Mas vós vos aproximastes do monte Sião e da cidade de Deus vivo, a Jerusalém celestial, e de milhões de anjos reunidos em festa, e da assembléia dos primogênitos cujos nomes estão inscritos nos céus, e de Deus o juiz de todos, e dos espíritos dos justos que chegaram à perfeição, e de Jesus, mediador de uma nova aliança, e do sangue da aspersão mais eloqüente que o de Abel" (Hb 12,22-24).
14. Plenamente confiamos, ó veneráveis irmãos, que estas nossas paternais exortações, pelo modo como julgardes mais oportuno tornadas por vós conhecidas ao clero e aos fiéis a vós confiados, serão de bom grado postas em prática, não só salutarmente, mas também com fervoroso zelo, em auspício das graças celestes e em penhor da nossa particular benevolência, com efusão de coração concedemos a bênção apostólica a cada um de vós e a todos os vossos rebanhos, e de modo particular aos que generosa e piedosamente responderem ao nosso convite. Dado em Roma, junto a S. Pedro, no dia 30 de junho de 1960, vigília da Festa do Preciosíssimo Sangue de N. S. J. C., segundo ano do nosso Pontificado.
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